sexta-feira, 13 de junho de 2014

RETRATO PRETO E BRANCO (Marrom)


Conversando silenciosamente com as notas de um jornal velho, constatei que as arcaicas sanhas eram já bem parecidas com os últimos códigos políticos modernos.

Os termos suavizados pelos editores não escondiam por detrás as personagens embrionárias que viriam a se tornar as atuais hienas ferozes; e as intenções mauras nas suas palavras demagógicas em tom suave, revelavam aquele tempo a razão de hoje tantas crianças desnutridas e filas intermináveis de desamparadas vítimas da saúde pública, movendo-as às lágrimas em desespero.

Mas o que mais me chamou a atenção foi sem dúvida a cara de alguns, que mesmo sem fotografia escarneciam rindo e prometendo, e um com fotografia ainda jovem, barbudo sindicalista, parecia trazer escrito na testa o que viria a revelar-se depois.

O jornal de tão velho amarelou pálido, e já prurido remeteu-me ao velho código de Hamurabi, do qual trazia umas notas em referência a um passado há muito sepultado, quando a justiça tardava, mas não falhava.

E a velha igreja de Pedro que em outra nota rememorava não a de Roma, mas a de certo tal não se sabe o quê de uma estranha igreja recém lançada no mercado, àquela altura, e hoje já meio vovó convertida em palácio de mármore por fora, e falsidade e traição em ouro por dentro...

Semelhante a tantas que ora abundam para todos os níveis, e de preferência para os sem nível nenhum...

Não foi possível folhear todas as páginas, devido os altos índices de ácaros e outros fungos, inclusive os abstratos que as notas revelavam; mas como a primeira página trouxesse quase todos os assuntos de suas páginas internas, por osmose e dedução vi quase tudo escrito em preto e branco, ou melhor, dito preto e marrom escuro...

Lamentei deveras a sorte daquele velho jornal, por tamanha carga de vermes e contaminação. Mas refiz meu juízo, pois se tratava apenas de um papel escrito com as já letras frias mortas, embora tão vivas quanto opostamente as mortes que causaram revelassem em abstrato as nunca dantes vistas tão concretas neste país de hoje!

Escondidas devido o tempo já sepultado, as vítimas continuam insepultas... Enquanto muitos algozes ainda vivos riam como caricaturas políticas de todos os tempos, tais como as de agora dissimuladas, falsas e corruptas às gargalhadas de ironia.


Para espantar-me de vez e salvar da ruína total aquele velho jornal, quase milagrosamente no canto esquerdo inferior lá estava a redenção suprema daquele velho matutino, numa pequena nota: “Concerto número vinte e um de Mozart”, ainda que, um comentário deveras inútil dizia que “duzentos anos depois da sua morte não fazia diferença se o Gênio Mozart havia composto sua primeira sinfonia aos oito anos”... Bem, isto não merece nem comentário. O fato é que, de repente, Mozart e outros poucos desta magnitude existiram, e a sua música eternizada está em variadas formas de registro. Inclusive no velho e decadente jornal, tão cheio de corrupções e ácaros. E como um lótus numa ilha de fungos, sobressaía-se em pequena nota a magnífica imagem do grande Mozart, para acalentar-me, ainda que minimamente, quando o desalento já me tombara pelo desgosto.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário