Distanciei-me tanto de mim em busca da perfeição e
do mérito, que um dia, ao voltar para casa, espantei-me quando ao chegar à
esquina da rua em que morava e de costume virava à esquerda para chegar ao meu
destino, não virei.
Nesse dia resolvi seguir em frente e ao andar aproximadamente
dez metros dobrei à direita e cheguei inesperadamente ao coração do povoado.
E aí me dei conta, ao encontrar a refrescante e
velha fonte jorrando cristalina água, de que há muito tempo não a bebia nem via
ou escutava o seu melodioso cantar.
E até levei um susto, ao ver-me refletido na água tão
envelhecido, de há muito não olhar para mim!
Tão esquecido e distraído andava que nem mais reparava
na vidraça da velha casa em frente ao largo da fonte, que me servira de espelho.
Constatei meio desanimado e
talvez até surpreso que o tempo passa mais depressa do que a gente imagina!
Passa... e não espera os
nossos cabelos eternamente castanhos e sedosos sem nenhum fio branco; nem a
pele lisa, sem rugas, se conserva pelo tempo que nos aprouver.
E então prometi para mim mesmo, a partir daquele
momento em que me reencontrei que jamais me afastaria de mim em busca de
qualquer artifício. Doravante vou preparar o meu espírito para não levar nenhum
susto pela passagem irresistível do tempo.
De algum modo, a minha velha ilusão já sofrera forte
abalo ao ver-me de surpresa e constatar o longo período em que andei afastado
do centro de minha digna e original morada interior!
A de agora tomarei algumas
providências, que até podem parecer supersticiosas, mas adotei o hábito de sair
e retornar para casa sempre por lados opostos.
E é de tal jeito que hoje descendo
pela única rua de entrada do povoado e chegando à fonte onde quero agora sempre
passar, em vez de seguir em frente uns metros e dobrar à esquerda, sigo uns dez
metros por uma ruela à direita até chegar a minha casa.
Pela manhã, ao sair dobro à esquerda
e desço até á fonte e saio do povoado em direção ao meu destino, para
finalmente retornar à minha nova casa psíquica, que agora fica à esquerda dos
meus sentimentos e à direita do meu pensamento.
Adotei também o hábito de olhar com mais freqüência para a velha
vidraça que voltou a servir-me de espelho, verificando como anda a alma, nestes
dias de grandes atribulações.
Estranhamente quando olho nesse espelho, a menina dos olhos, como se
costuma chamar o centro dos olhos emite um brilho e volta e meia faz-me piscar;
e eu meio sem jeito desvio timidamente o olhar dela, por não compreender a
mensagem que insiste em passar-me, a minha atrevida menina dos olhos.
Mas ainda não é isto o que mais preocupação tem-me causado nos últimos
tempos, senão uns fluidos lacrimais ocultos que involuntariamente descem pela
face esquerda; e eu, pessoalmente os interpreto, pelo fato de ser à esquerda,
como sinal de que as coisas externas do coração andam meio conturbadas...
Ainda muitas campanhas da
sociedade se fazem necessárias para aplacar a fome de crianças pobres, num país
absolutamente rico, que arrecadando quase metade do PIB explora o povo com os
impostos mais caros do mundo e nada lhe oferece em troca?
Mas quando descem esses fluídos lacrimais pela face direita, aí, pelo
fato de ser à direita eu não tenho dúvida de que um pedido de socorro clama dos
côncavos vales, onde estão erguidas e ilhadas de saber as escolas, que
juntamente com alguns professores, alguns poucos e bons professores gritam por
socorro.
Mas infelizmente a cada dia a escola sucumbe à margem esquerda da
estrada, por onde outrora felizes - embora às vezes até descalços - caminhavam
alunos pela manhã fresca de encontro à bafejada aula que ensinava a ler, a
escrever e fazer contas, num primeiro momento da infância inocente e feliz!
E num segundo álgebra, educação moral e cívica, boa gramática e correlações
do gênero do conhecimento básico, humano e científico, e não havia sequer no
horizonte a menor ideia de nuvens escuras fedorentas ideológicas!
E até a alma de uma povoação de alunos bem arejada e feliz cantava o
hino nacional, empunhando a bandeira da Pátria ao galgar as arcadas de uma
escola tradicional, simples e eficiente!
Sim, aquela escola sem medo ou receio do que ensinava, sente hoje
vergonha porque o esquecera. Mas ainda alguns poucos e bons professores choram,
descendo as suas lágrimas ora pela minha face direita apedrejada, ora pela
minha face esquerda em clamor frente à infanta fome de pão, de escola, de saúde,
segurança, de caráter, que nem o secretário ministro, nem o presidente (a) não
têm.
Bem que o povo experimentou o pobre e sem escola prometendo promover
riqueza e educação, mas não deu certo; nem poderia que a casa onde nasceu não
lhe ofereceu luz, exemplos, meios nem parâmetros éticos nem morais.
Nasceu, abriu os olhos, passou fome e fugiu... E aí, onde há fome e
falta herança ingênita de honra, caráter e carma positivo, quem se importa com
ética? E da expansão de garoto esperto e “aético” ao maioral, maioral mesmo,
não mudou um tostão em nada, nem tem compaixão.
E essa mesma falta de caráter por osmose se espalhando nos governos das
corruptelas dos pequenos, médios e grandes municípios, bem como na mesma ordem
nos estados e demais células de uma riquíssima nação de bens materiais e de
espírito empobrecida, os vermes tomam conta, e as desmoralizações passam a ser
culturais.
E então, como a maioria de seus legisladores e executivos sem escola
não possua brio, vontade, nem vergonha para redistribuir do que se apropriam -
e que nunca lhe pertencera - rolam as minhas lágrimas de infortúnio, por uma
fortuna imensurável moída...
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